domingo, 7 de julho de 2013

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Ecce Homo

Sim, sei de onde venho!
Insatisfeito com a labareda
Ardo para me consumir.
Aquilo em que toco torna-se luz,
Carvão aquilo que abandono:
Sou certamente labareda.

Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência"

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

"É preciso estar sempre embriagado. Eis aí tudo: é a única questão. Para não sentirdes o horrível fardo do Tempo que rompe os vossos ombros e vos inclina para o chão, é preciso embriagar-vos sem trégua.

Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira. Mas embriagai-vos.
E se, alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre a grama verde de um precipício, na solidão morna do vosso quarto, vós acordardes, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que foge, a tudo que geme, a tudo que anda, a tudo que canta, a tudo que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, responder-vos-ão: 'É hora de embriagar-vos! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos: embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira'."

Charles Baudelaire


quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Fala do velho do restelo ao astronauta

Aqui, na Terra, a fome continua,

A miséria, o luto, e outra vez a fome.


Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
lhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.


( SARAMAGO; In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)


terça-feira, 6 de outubro de 2009

Todos os Escritos Possuem um Sentido

Não queremos ter vergonha de escrever e não sentimos a necessidade de falar para não dizer nada. De resto, ainda que o desejássemos, não o conseguiríamos: ninguém pode conseguir isso. Todos os escritos possuem um sentido, mesmo que esse sentido esteja muito afastado daquele que o autor tenha pensado dar-lhe. Para nós, com efeito, o escritor não é Vestal nem Ariel: está «metido no caso», faça o que fizer, marcado, comprometido, mesmo no seu mais profundo afastamento. Se, em certas épocas, utiliza a sua arte para forjar bugigangas de inanidade bem soante, até isso é significativo: é porque há uma crise das letras e, sem dúvida, da sociedade.




Jean-Paul Sartre, in 'Situações II'

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O tempo e o espírito

O tempo, embora faça desabrochar e definhar animais e plantas com assombrosa pontualidade, não tem sobre a alma do homem efeitos tão simples. A alma do homem, aliás, age de forma igualmente estranha sobre o corpo do tempo. Uma hora, alojada no bizarro elemento do espírito humano, pode valer cinquenta ou cem vezes mais que a sua duração medida pelo relógio; em contrapartida, uma hora pode ser fielmente representada no mostrador do espírito por um segundo.


Virginia Woolf

Os nossos eus

Esses eus de que somos feitos, sobrepostos como pratos empilhados nas mãos de um empregado de mesa, têm outros vínculos, outras simpatias, pequenas constituições e direitos próprios - chamem-lhes o que quiserem (e muitas destas coisas nem sequer têm nome) - de modo que um deles só comparece se chover, outro só numa sala de cortinados verdes, outro se Mrs. Jones não estiver presente, outro ainda se se lhe prometer um copo de vinho - e assim por diante; pois cada indivíduo poderá multiplicar, a partir da sua experiência pessoal, os diversos compromissos que os seus diversos eus estabelecerem consigo - e alguns são demasiado absurdos e ridículos para figurarem numa obra impressa.

Virginia Woolf, in "Orlando"

Predomínio do sentido interior

Era eu um poeta estimulado pela filosofia e não um filósofo com faculdades poéticas. Gostava de admirar a beleza das coisas, descobrir no imperceptível, através do diminuto, a alma poética do universo.

A poesia da terra nunca morre. Podemos dizer que as eras passadas foram mais poéticas, mas não podemos dizer (...)
A poesia encontra-se em todas as coisas - na terra e no mar, no lago e na margem do rio. Encontra-se também na cidade - não o neguemos - é evidente para mim, aqui, enquanto estou sentado, há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia no barulho dos carros nas ruas, em cada movimento diminuto, comum, ridículo, de um operário, que do outro lado da rua está pintando a tabuleta de um açougue.
Meu senso íntimo predomina de tal maneira sobre meus cinco sentidos que vejo coisas nesta vida - acredito-o - de modo diferente de outros homens. Há para mim - havia - um tesouro de significado numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato. Há para mim uma plenitude de sugestão espiritual em uma galinha com seus pintinhos, atravessando a rua, com ar pomposo. Há para mim um significado mais profundo do que as lágrimas humanas no aroma do sândalo, nas velhas latas num monturo, numa caixa de fósforos caída na sarjeta, em dois papéis sujos que, num dia de ventania, rolarão e se perseguirão rua abaixo. É que a poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus, a tomar plena consciência de sua queda, atônito diante das coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das coisas, e lutasse para recordar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não sob aquelas formas e aquelas condições, mas de nada mais se recordando.


Fernando Pessoa em "O Eu Profundo".
1910?


O diário de uma unha

O peso da verdade caiu como aço E como aço cortante e viril
Rogou para as lápides em memórias falsas
Para todos os tolos sua força podre e morta.

Quantos vômitos, quantas náuseas, quantos dentes?
Não existe mais cabelo!
Não existe mais corpo!
Não existe mais unhas!
Feliz pôr do sol comentado pela suave linguagem do poeta que se foi,
Foi a linguagem dos macacos ácidos...foi a linguagem do homo sapiens...

O conhecimento cá no peito, como força cravada
De tantas verdades perfeitas e ignóbeis.
Feliz foi e é o homem que se libertou e se liberta de tantas ditaduras impostas
Seja pra lá, se pra cá, Ocidente, Oriente, tanto faz.
O que importa é a felicidade livre!
Felicidade livre! Que sonho mais belo e doce! Utopia do meu coração!

Que seja utópico então, meu querido irmão!
Pense como Campanella, Tomas Morus, Platão!
Viva a Utopia! Senão, esqueça da escola e das ideias porque de nada valeram...
Viva a Cidade do Sol, do nosso lúcido Campanella!
Viva a Utopia, do nosso querido Morus!
Viva a República, do nosso amado Platão!
Viva a Utopia! Caro irmão!

“Macacos evoluídos” escutem a “minha reza”:
_ Escutem a procissão passar, seguem em marcha...antes que a vela derreta e o pecado acabe.
_Soldados em marcha seguem em frente têm crianças, mulheres, velhos, esperando vossas sentenças... Loucura liberta! Razão enclausurada!

O tempo está aqui, vagando dentro e fora de nós.
Passíveis, responsáveis, hipócritas, mentirosos, solidários, sonhadores, articuladores, verdadeiros?
Não! Definitivamente não!
Uma palavra vaga e pequena não caberia ao tempo nem aos contemporâneos, façanhas justiçáveis.
Quero ser utópica! Meu caro irmão!

Criar idéias! Pensamentos! Razões! Alternativas!
Sem razão de ser o que realmente deveria ser!
Pois a verdade está enterrada na alcova com o mais fino aço cortante.
E a unha está quebrada.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Isso é muita sabedoria

"Quando fazemos tudo para que nos amem e não conseguimos, resta-nos um último recurso: não fazer mais nada. Por isso, digo, quando não obtivermos o amor, o afeto ou a ternura que havíamos solicitado, melhor será desistirmos e procurar mais adiante os sentimentos que nos negaram. Não fazer esforços inúteis, pois o amor nasce, ou não, espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes, é inútil esforçar-se demais, nada se consegue;outras vezes, nada damos e o amor se rende aos nossos pés. Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido. Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer. Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho...o de mais nada fazer".


Clarice Lispector

domingo, 27 de setembro de 2009

Sete Cores

Lígia mantinha as opiniões para si. Achava graça nos outros e ria com certa dignidade e nobreza. Uma pessoa estritamente reservada e bem conceituada, pelo menos no plano da sua dimensão, ou seja, uma quarta dimensão que a tirava de foco das cenas e a colocava como um terceiro sujeito sendo nos olhos dos outros, talvez quem saiba o primeiro sujeito. Mantinha nos seus olhos a mesma dignidade e nobreza que achava graça nas pessoas, embora esse olhar mantivesse uma estranha atenção das pessoas. Quero dizer que Lígia, apesar de pertencer a “quarta dimensão” em nível de pensamento, ela conseguia enfocar os olhares nela. Era como se sua opinião fosse importante, apesar de que sabia conscientemente que não era. Tinha certeza que de nada valia analisar e falar sobre os espetáculos humanos, pois de nada adiantaria explicar os absurdos que via.
Continha-se em um gargalo de conhaque ou cerveja. A sua boêmia pertencia a só ela e a mais ninguém. Claro que gostava de ser convidada para as festas mais fugazes, não por se tornar e deixar transparecer em seus olhos o pouco apetite intelectual que via nas pessoas, mas sim, como qualquer ser humano, que gosta de ser convidada para festas. Afinal de contas, ela se divertia, de forma ímpar, mas se divertia. Ao mesmo tempo, as suas retinas congelavam algo centralizador nas relações humanas. Na verdade Lígia, tinha seus amigos, o seu ambiente intelectual e cultural, condizente com sua quarta dimensão. Mas se eles estavam nessa mesma dimensão, Lígia, porém, iria pular para a quinta dimensão. Sempre um passo, sempre um silêncio e um olhar a mais, nas externalidades e interioridades humanas.
A vida era dia após dia descortinada para ela como cortinas de um palco. Algumas cenas eram inéditas e outras ela já sabia todo o enredo, ator por ator social que transpassava a nível individual. Fugia dos debates ontológicos, não que não gostasse de filosofia, mas achava muito sério para ser debatido com qualquer um. As pessoas estavam mais interessadas em política, globalização, internet e comunicação do que com a própria filosofia. Insatisfeita do seu desejo de conhecimento se retirava mais cedo e ia beber com os bêbados mais vadios e vagabundos. Bebia muito! Como se diz por aí, tomava todas.
Uma pessoa independente. Não tinha horas de chegada nem horas de partida. Seu trabalho fazia com todo afinco possível. Afinal, gostava do que fazia e não tinha o porquê “transgredir” o próprio trabalho. Era fotógrafa de um grande jornal, tudo bem que suas fotografias não eram artísticas e sim continham cenas de total realismo, ao menos na lente do fotógrafo. Embora, Lígia achasse que a violência era parte da representação em um pedaço de jornal e que por trás disso existia toda a questão do exagero e medo humano. Sabia muito bem, como a imprensa conseguia afinar o medo para as mais tórridas correntes de sangue. A representação do outro sempre foi uma questão midíatica e não seria diferente com a violência, principalmente com a mais visível, a violência urbana. Lígia ia desde a periferia até as classes altas da sociedade (quando esses crimes formavam as grandes manchetes de jornais), contornava toda a cidade e sempre quando fazia esses caminhos mais diversos, lembrava sempre da música “Construção” e “Cotidiano”. Sua cabeça antes de fotografar algo “terrível” produzia as belas canções não só da MPB, Blues e Jazz, sem falar é claro, das músicas clássicas. Precisa disso! Precisa se preencher com algo bom e esse algo bom para ela nesse momento era a música e não a vulgarização da mesma.
Depois do trabalho, hora de beber e fumar e comer algo. Esse algo podia ser qualquer coisa, dizia que seu principal alimento era o conhecimento. Morava sozinha, num quarto de hotel, numa parte “boa” da cidade. Morava só. Gostava das pessoas por companhia, mas entre um Kant e um boteco cheio de más idéias, preferiria sem dúvida, ficar só com a “Crítica da Razão Pura”, quem sabe um dia entenderia. Fazia troça dela mesma, mas sabia muito bem que era verdade. Entender Kant era para poucos! E Lígia não era filósofa! Devia colocar-se no seu lugar, fotógrafa apenas isso. Mas pra ela, isso era pouco. Todas as ciências mexiam-lhe o cenho intelectual.
Aos domingos fugia da sua rotina. Não atendia telefones, celulares, não entrava na internet, não lia livros, não fotografava, não pulava para quarta ou quinta dimensão. Aos domingos iria visitar sua mãe. Todos os domingos a mesma “tarefa”. A mãe era o único resquício da infância que ainda tinha. Do pai pouco se lembra, a figura dele foi sumindo como os barquinhos que somem na linha do horizonte. O pai fugira de casa quando a menina tinha três anos, a mãe cuidou de Lígia como quem cuida de um bebê até na adolescência quando surgiram os primeiros sintomas da doença. A mãe de Lígia, tinha transtorno psicótico. Um dia quis por fogo na casa, outro dia quis por fogo na filha e outro dia quis por fogo no mundo. A menina não tinha condição de conviver mais com a mãe e foi retirada dessa com seus doze anos e a tia (a única tia) cuidou dessa adorável menina. Antes que cheguemos ao hospital psiquiátrico, antes que façamos essa viagem com Lígia, antes que conhecemos sua mãe, vamos conhecer primeiro sua amável tia. Natália amava sua sobrinha e tinha imensa comiseração por tudo àquilo que acontecia, até que pediu a guarda da jovem.
Natália era única irmã de Maria. Natália era solteira, trabalhava de emprega doméstica para a classe média e também como se costuma dizer, fazia outros bicos, tudo para garantir o “futuro” de Lígia. Na verdade a tia Natália viveu para a sobrinha. A “pobre” apaixonou-se por Pedro, um rapaz da vizinhança que trabalhava em uma oficina mecânica, esta paixão parecia terminar em matrimônio, até que Natália ficará grávida e ele a rejeitou e pediu o aborto. Todo o “amor” e paixão acabaram nesta palavra: aborto. Tia Natália não abortaria, do jeito que era amável e sensata, jamais faria isso. Lígia, nessa época já tinha seus dezessete anos! E tinha escolhido a fotografia como meio de vida. Lígia apoiou a tia em tudo em que lhe coube mais de nada vale o apoio quando vem a outra palavra: morte. Natália morrerá no parto e a criança também. Lígia amaldiçoou tudo que lhe coube, chegou até gritar com Deus, mas sabia que de nada valia. Tia Natália estava morta e seu amor por ela onde ficaria? Qual era o sentido da vida? Que sentido tinha tudo aquilo? Sim, porque nessas alturas além de perder a mãe aos doze anos de idade para um hospital psiquiátrico, perderá agora a tia, para algo mais ininteligível, a morte! Lígia amava aquela tia como amava uma mãe ausente. Decidiu então, esfolar os sentidos da razão e da emoção e seguir em frente, tudo estava passado no seu nome, mesmo pouco, era uma casa no seu nome e um carro popular. Pegou esse dinheiro. Mudou de bairro, começou a fazer fotografia e tinha lá seu ganha pão também com produções de trabalhos acadêmicos. Conseguiu se virar às duras penas.
Pra dizer que Lígia não é imune de sentimentos, até hoje, vai ao cemitério local, levar flores. Apenas flores e nada mais, senão flores. É como se as flores para a sua tia falassem mais do que se fosse para a sua mãe. Talvez os mortos mereçam ou entendam mais as rosas do que os vivos. Em cada pétala é como se estivesse uma lágrima rígida de Lígia. Nada de velas ou rezas. Apenas flores.
Mas como é domingo, é chegado o dia de sua visita no hospital psiquiátrico São Paulo. Lígia sente um amor latente pela mãe, o problema é demonstrá-lo. Não que a culpa seja sua. Mas sim, por parte de Maria que pouco entende de amor. Nem sabemos se ela sabe que aquela mulher (Lígia, já está com 32 anos) é sua filha. Maria passa o tempo falando sozinha! A sua “violência com os outros” foi domada com tantas drogas. Tem suas crises características de mania de perseguição, delírios, alucinação. Certa noite, terça-feira passada, acordou toda ala, pois jurava de pé de juntos que existiam em seu quarto, grandes cabeças de porcos grudadas na parede, existia um grande palhaço gritando o seu nome. O medo era reverenciado como sua própria essência. Era a espetacularização traumática do ser. Quando isso acontecia, Maria era imediatamente dopada. Voltava a si horas depois. Ela pairava entre a inquietude e a “normalidade”. As mãos de Maria sempre em movimento, sempre buscando alguma coisa no ar, alguma coisa etérea. Suas mãozinhas iam de encontro ao invisível, por mais que buscasse nunca encontrava esse pedaço de matéria.
Enquanto isso, Lígia está a caminho. Queria poder levar rosas, mas sabe que seria um gesto infantil, no lugar de rosas, melhor uma caixa de chocolates. Sim, faria isso. Passou no primeiro hipermercado que encontrara no caminho e comprou uma bela caixa de bombons. Queria poder escrever um bilhete – Mãe te amo! Mas seria ingênuo pensar dessa maneira. Maria como já foi dito não reconhecia nem ao menos a própria filha, o que dirá a palavra amor para ela? Que efeito teria esse gesto? Lígia sabe, nenhum. Enquanto pensava sobre tais questões, dois adolescentes encararam-na. Veio logo, a “raiva” de transparecer os sentimentos para os outros. O que afinal eles encararam? Sua dúvida? Sua dor? Sua essência? Seu temor? Contudo, Lígia, optou pelo obvio, não eles não teriam capacidade para tal percepção. Então, comprou logo a caixa de bombons colocou numa sacola comum do hipermercado e seguiu seu caminho. Ainda no trânsito surgia na sua mente os olhares dos adolescentes! Ela decidiu olhar pra si e ver quantas lacunas ainda não estavam preenchidas. Causa disso em boa parte devido à mãe ausente. Não sentiu pena. Nem dó. Nem compaixão. Na verdade, não sentiu nada, nem por ela e nem pela mãe. Naquele momento estava só. E não queria mais pensar ou desenvolver pensamentos que transpunham sua essência em algo doloroso. Queria chegar logo no hospital, visitar sua mãe, conversar com os médicos e voltar para a sua rotina. Nada muito além. Como já foi dito, nos dias de domingo, Ligia não ia para quarta ou quinta dimensão. Era um ser humano como outro qualquer, e no domingo apresentava o que mais detestava sua pequena e quase invisível fragilidade materna.
_ Chegou cedo hoje! Disse uma das enfermeiras.
_ Sim, o trânsito de domingo é sempre bom.
Sem maiores comentários interrogativos, Lígia entrou pela porta da frente do hospital psiquiátrico São Paulo. Passou por alguns corredores, dobrou à direita, depois à esquerda, seguiu mais uns cinqüenta metros e logo já se via o pátio. Muitas visitas hoje, foi o que reparou logo a primeira vista, sua mãe estava sentadinha num banco rústico, sempre apalpando o ar. O pátio era um lugar bonito. Parecido com um bosque. Muitas árvores, coqueiros, roseiras, uma trilha para quem quisesse fazer suas curtas caminhadas. Muitos postes com luzes, que melhorava muito o ambiente noturno do hospital. Lígia chegara de mansinho, querendo ainda brincar com a mãe, querendo assustar a mãe e depois se jogar no pescoço dela e dar aquele beijo perdido na infância. No momento em que ia, parou! Percebeu o erro que estava cometendo. Poderia assustar de verdade a mãe e essa poderia ter surtos. Melhor não arriscar. Então, seguiu sua marcha normal. Chegando perto disse:
_ Mãe. Sou eu Lígia. Sua filha. Trouxe bombons para a senhora. Bem docinhos e redondos; Lígia riu quando disse isso, queria fazer graça, mas de nada valeu.
Maria continuava com a sua mãozinha apalpando o ar e olhando quem sabe, o horizonte indefinido.
Porém, Lígia não se conteve, foi e deu um forte abraço na sua mãe. Ela tentou retribuir com alguma força nas mãos e depois cedeu ao nada. Lígia pegou sua mão e a beijou.
_ Mãe eu te amo! E deu um lindo e suave beijo nas suas faces.
Nesse dia, aconteceu algo extraordinário. Maria retribuiu o beijo e disse que estava melhor, disse que tinha porcos nas paredes dos quartos, disse que tinha um palhaço gritando o seu nome, disse dos remédios. Só que no mesmo instante, ouve aquela regressão, ouve os delírios, mas mesmo assim, manteve-se calma ao lado da filha. Uma cena e tanto! Lígia cantou uma canção para a sua mãe, enquanto ela delirava, enquanto alucinava, Lígia cantava:

Há Tempos
Parece cocaína mas é só tristeza, talvez tua cidade

Muitos temores nascem do cansaço e da solidão
E o descompasso e o desperdício herdeiros são
Agora da virtude que perdemos.
Há tempos tive um sonho

Não me lembro não me lembro
Tua tristeza é tão exata
E hoje em dia é tão bonito
Já estamos acustumados
A não termos mais nem isso.
Os sonhos vêm
E os sonhos vão
O resto é imperfeito.
Disseste que se tua voz tivesse força igual

À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira.
E há tempos nem os santos têm ao certo

A medida da maldade
Há tempos são os jovens que adoecem
Há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
E só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção.
Meu amor, disciplina é liberdade

Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem
E ela disse: - Lá em casa têm um poço mas a água é muito limpa.

Era como se as duas contemplassem o infinito. Cada qual da sua maneira. Lígia nunca entenderia Maria e Maria nunca entenderia Lígia.
Maria estava presa pra sempre naquele hospital e Lígia estava livre pra sempre. Ambas, porém, incompreendidas e vivas!