quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Fala do velho do restelo ao astronauta

Aqui, na Terra, a fome continua,

A miséria, o luto, e outra vez a fome.


Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
lhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.


( SARAMAGO; In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)

Um comentário:

  1. Saramago em tudo que faz é genial. Sempre que o leio sinto o qto a língua portuguesa pode ser, se bem usada, devastadoramente bela.

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