Lígia mantinha as opiniões para si. Achava graça nos outros e ria com certa dignidade e nobreza. Uma pessoa estritamente reservada e bem conceituada, pelo menos no plano da sua dimensão, ou seja, uma quarta dimensão que a tirava de foco das cenas e a colocava como um terceiro sujeito sendo nos olhos dos outros, talvez quem saiba o primeiro sujeito. Mantinha nos seus olhos a mesma dignidade e nobreza que achava graça nas pessoas, embora esse olhar mantivesse uma estranha atenção das pessoas. Quero dizer que Lígia, apesar de pertencer a “quarta dimensão” em nível de pensamento, ela conseguia enfocar os olhares nela. Era como se sua opinião fosse importante, apesar de que sabia conscientemente que não era. Tinha certeza que de nada valia analisar e falar sobre os espetáculos humanos, pois de nada adiantaria explicar os absurdos que via.
Continha-se em um gargalo de conhaque ou cerveja. A sua boêmia pertencia a só ela e a mais ninguém. Claro que gostava de ser convidada para as festas mais fugazes, não por se tornar e deixar transparecer em seus olhos o pouco apetite intelectual que via nas pessoas, mas sim, como qualquer ser humano, que gosta de ser convidada para festas. Afinal de contas, ela se divertia, de forma ímpar, mas se divertia. Ao mesmo tempo, as suas retinas congelavam algo centralizador nas relações humanas. Na verdade Lígia, tinha seus amigos, o seu ambiente intelectual e cultural, condizente com sua quarta dimensão. Mas se eles estavam nessa mesma dimensão, Lígia, porém, iria pular para a quinta dimensão. Sempre um passo, sempre um silêncio e um olhar a mais, nas externalidades e interioridades humanas.
A vida era dia após dia descortinada para ela como cortinas de um palco. Algumas cenas eram inéditas e outras ela já sabia todo o enredo, ator por ator social que transpassava a nível individual. Fugia dos debates ontológicos, não que não gostasse de filosofia, mas achava muito sério para ser debatido com qualquer um. As pessoas estavam mais interessadas em política, globalização, internet e comunicação do que com a própria filosofia. Insatisfeita do seu desejo de conhecimento se retirava mais cedo e ia beber com os bêbados mais vadios e vagabundos. Bebia muito! Como se diz por aí, tomava todas.
Uma pessoa independente. Não tinha horas de chegada nem horas de partida. Seu trabalho fazia com todo afinco possível. Afinal, gostava do que fazia e não tinha o porquê “transgredir” o próprio trabalho. Era fotógrafa de um grande jornal, tudo bem que suas fotografias não eram artísticas e sim continham cenas de total realismo, ao menos na lente do fotógrafo. Embora, Lígia achasse que a violência era parte da representação em um pedaço de jornal e que por trás disso existia toda a questão do exagero e medo humano. Sabia muito bem, como a imprensa conseguia afinar o medo para as mais tórridas correntes de sangue. A representação do outro sempre foi uma questão midíatica e não seria diferente com a violência, principalmente com a mais visível, a violência urbana. Lígia ia desde a periferia até as classes altas da sociedade (quando esses crimes formavam as grandes manchetes de jornais), contornava toda a cidade e sempre quando fazia esses caminhos mais diversos, lembrava sempre da música “Construção” e “Cotidiano”. Sua cabeça antes de fotografar algo “terrível” produzia as belas canções não só da MPB, Blues e Jazz, sem falar é claro, das músicas clássicas. Precisa disso! Precisa se preencher com algo bom e esse algo bom para ela nesse momento era a música e não a vulgarização da mesma.
Depois do trabalho, hora de beber e fumar e comer algo. Esse algo podia ser qualquer coisa, dizia que seu principal alimento era o conhecimento. Morava sozinha, num quarto de hotel, numa parte “boa” da cidade. Morava só. Gostava das pessoas por companhia, mas entre um Kant e um boteco cheio de más idéias, preferiria sem dúvida, ficar só com a “Crítica da Razão Pura”, quem sabe um dia entenderia. Fazia troça dela mesma, mas sabia muito bem que era verdade. Entender Kant era para poucos! E Lígia não era filósofa! Devia colocar-se no seu lugar, fotógrafa apenas isso. Mas pra ela, isso era pouco. Todas as ciências mexiam-lhe o cenho intelectual.
Aos domingos fugia da sua rotina. Não atendia telefones, celulares, não entrava na internet, não lia livros, não fotografava, não pulava para quarta ou quinta dimensão. Aos domingos iria visitar sua mãe. Todos os domingos a mesma “tarefa”. A mãe era o único resquício da infância que ainda tinha. Do pai pouco se lembra, a figura dele foi sumindo como os barquinhos que somem na linha do horizonte. O pai fugira de casa quando a menina tinha três anos, a mãe cuidou de Lígia como quem cuida de um bebê até na adolescência quando surgiram os primeiros sintomas da doença. A mãe de Lígia, tinha transtorno psicótico. Um dia quis por fogo na casa, outro dia quis por fogo na filha e outro dia quis por fogo no mundo. A menina não tinha condição de conviver mais com a mãe e foi retirada dessa com seus doze anos e a tia (a única tia) cuidou dessa adorável menina. Antes que cheguemos ao hospital psiquiátrico, antes que façamos essa viagem com Lígia, antes que conhecemos sua mãe, vamos conhecer primeiro sua amável tia. Natália amava sua sobrinha e tinha imensa comiseração por tudo àquilo que acontecia, até que pediu a guarda da jovem.
Natália era única irmã de Maria. Natália era solteira, trabalhava de emprega doméstica para a classe média e também como se costuma dizer, fazia outros bicos, tudo para garantir o “futuro” de Lígia. Na verdade a tia Natália viveu para a sobrinha. A “pobre” apaixonou-se por Pedro, um rapaz da vizinhança que trabalhava em uma oficina mecânica, esta paixão parecia terminar em matrimônio, até que Natália ficará grávida e ele a rejeitou e pediu o aborto. Todo o “amor” e paixão acabaram nesta palavra: aborto. Tia Natália não abortaria, do jeito que era amável e sensata, jamais faria isso. Lígia, nessa época já tinha seus dezessete anos! E tinha escolhido a fotografia como meio de vida. Lígia apoiou a tia em tudo em que lhe coube mais de nada vale o apoio quando vem a outra palavra: morte. Natália morrerá no parto e a criança também. Lígia amaldiçoou tudo que lhe coube, chegou até gritar com Deus, mas sabia que de nada valia. Tia Natália estava morta e seu amor por ela onde ficaria? Qual era o sentido da vida? Que sentido tinha tudo aquilo? Sim, porque nessas alturas além de perder a mãe aos doze anos de idade para um hospital psiquiátrico, perderá agora a tia, para algo mais ininteligível, a morte! Lígia amava aquela tia como amava uma mãe ausente. Decidiu então, esfolar os sentidos da razão e da emoção e seguir em frente, tudo estava passado no seu nome, mesmo pouco, era uma casa no seu nome e um carro popular. Pegou esse dinheiro. Mudou de bairro, começou a fazer fotografia e tinha lá seu ganha pão também com produções de trabalhos acadêmicos. Conseguiu se virar às duras penas.
Pra dizer que Lígia não é imune de sentimentos, até hoje, vai ao cemitério local, levar flores. Apenas flores e nada mais, senão flores. É como se as flores para a sua tia falassem mais do que se fosse para a sua mãe. Talvez os mortos mereçam ou entendam mais as rosas do que os vivos. Em cada pétala é como se estivesse uma lágrima rígida de Lígia. Nada de velas ou rezas. Apenas flores.
Mas como é domingo, é chegado o dia de sua visita no hospital psiquiátrico São Paulo. Lígia sente um amor latente pela mãe, o problema é demonstrá-lo. Não que a culpa seja sua. Mas sim, por parte de Maria que pouco entende de amor. Nem sabemos se ela sabe que aquela mulher (Lígia, já está com 32 anos) é sua filha. Maria passa o tempo falando sozinha! A sua “violência com os outros” foi domada com tantas drogas. Tem suas crises características de mania de perseguição, delírios, alucinação. Certa noite, terça-feira passada, acordou toda ala, pois jurava de pé de juntos que existiam em seu quarto, grandes cabeças de porcos grudadas na parede, existia um grande palhaço gritando o seu nome. O medo era reverenciado como sua própria essência. Era a espetacularização traumática do ser. Quando isso acontecia, Maria era imediatamente dopada. Voltava a si horas depois. Ela pairava entre a inquietude e a “normalidade”. As mãos de Maria sempre em movimento, sempre buscando alguma coisa no ar, alguma coisa etérea. Suas mãozinhas iam de encontro ao invisível, por mais que buscasse nunca encontrava esse pedaço de matéria.
Enquanto isso, Lígia está a caminho. Queria poder levar rosas, mas sabe que seria um gesto infantil, no lugar de rosas, melhor uma caixa de chocolates. Sim, faria isso. Passou no primeiro hipermercado que encontrara no caminho e comprou uma bela caixa de bombons. Queria poder escrever um bilhete – Mãe te amo! Mas seria ingênuo pensar dessa maneira. Maria como já foi dito não reconhecia nem ao menos a própria filha, o que dirá a palavra amor para ela? Que efeito teria esse gesto? Lígia sabe, nenhum. Enquanto pensava sobre tais questões, dois adolescentes encararam-na. Veio logo, a “raiva” de transparecer os sentimentos para os outros. O que afinal eles encararam? Sua dúvida? Sua dor? Sua essência? Seu temor? Contudo, Lígia, optou pelo obvio, não eles não teriam capacidade para tal percepção. Então, comprou logo a caixa de bombons colocou numa sacola comum do hipermercado e seguiu seu caminho. Ainda no trânsito surgia na sua mente os olhares dos adolescentes! Ela decidiu olhar pra si e ver quantas lacunas ainda não estavam preenchidas. Causa disso em boa parte devido à mãe ausente. Não sentiu pena. Nem dó. Nem compaixão. Na verdade, não sentiu nada, nem por ela e nem pela mãe. Naquele momento estava só. E não queria mais pensar ou desenvolver pensamentos que transpunham sua essência em algo doloroso. Queria chegar logo no hospital, visitar sua mãe, conversar com os médicos e voltar para a sua rotina. Nada muito além. Como já foi dito, nos dias de domingo, Ligia não ia para quarta ou quinta dimensão. Era um ser humano como outro qualquer, e no domingo apresentava o que mais detestava sua pequena e quase invisível fragilidade materna.
_ Chegou cedo hoje! Disse uma das enfermeiras.
_ Sim, o trânsito de domingo é sempre bom.
Sem maiores comentários interrogativos, Lígia entrou pela porta da frente do hospital psiquiátrico São Paulo. Passou por alguns corredores, dobrou à direita, depois à esquerda, seguiu mais uns cinqüenta metros e logo já se via o pátio. Muitas visitas hoje, foi o que reparou logo a primeira vista, sua mãe estava sentadinha num banco rústico, sempre apalpando o ar. O pátio era um lugar bonito. Parecido com um bosque. Muitas árvores, coqueiros, roseiras, uma trilha para quem quisesse fazer suas curtas caminhadas. Muitos postes com luzes, que melhorava muito o ambiente noturno do hospital. Lígia chegara de mansinho, querendo ainda brincar com a mãe, querendo assustar a mãe e depois se jogar no pescoço dela e dar aquele beijo perdido na infância. No momento em que ia, parou! Percebeu o erro que estava cometendo. Poderia assustar de verdade a mãe e essa poderia ter surtos. Melhor não arriscar. Então, seguiu sua marcha normal. Chegando perto disse:
_ Mãe. Sou eu Lígia. Sua filha. Trouxe bombons para a senhora. Bem docinhos e redondos; Lígia riu quando disse isso, queria fazer graça, mas de nada valeu.
Maria continuava com a sua mãozinha apalpando o ar e olhando quem sabe, o horizonte indefinido.
Porém, Lígia não se conteve, foi e deu um forte abraço na sua mãe. Ela tentou retribuir com alguma força nas mãos e depois cedeu ao nada. Lígia pegou sua mão e a beijou.
_ Mãe eu te amo! E deu um lindo e suave beijo nas suas faces.
Nesse dia, aconteceu algo extraordinário. Maria retribuiu o beijo e disse que estava melhor, disse que tinha porcos nas paredes dos quartos, disse que tinha um palhaço gritando o seu nome, disse dos remédios. Só que no mesmo instante, ouve aquela regressão, ouve os delírios, mas mesmo assim, manteve-se calma ao lado da filha. Uma cena e tanto! Lígia cantou uma canção para a sua mãe, enquanto ela delirava, enquanto alucinava, Lígia cantava:
Há Tempos
Parece cocaína mas é só tristeza, talvez tua cidade
Muitos temores nascem do cansaço e da solidão
E o descompasso e o desperdício herdeiros são
Agora da virtude que perdemos.
Há tempos tive um sonho
Não me lembro não me lembro
Tua tristeza é tão exata
E hoje em dia é tão bonito
Já estamos acustumados
A não termos mais nem isso.
Os sonhos vêm
E os sonhos vão
O resto é imperfeito.
Disseste que se tua voz tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira.
E há tempos nem os santos têm ao certo
A medida da maldade
Há tempos são os jovens que adoecem
Há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
E só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção.
Meu amor, disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem
E ela disse: - Lá em casa têm um poço mas a água é muito limpa.
Era como se as duas contemplassem o infinito. Cada qual da sua maneira. Lígia nunca entenderia Maria e Maria nunca entenderia Lígia.
Maria estava presa pra sempre naquele hospital e Lígia estava livre pra sempre. Ambas, porém, incompreendidas e vivas!
Continha-se em um gargalo de conhaque ou cerveja. A sua boêmia pertencia a só ela e a mais ninguém. Claro que gostava de ser convidada para as festas mais fugazes, não por se tornar e deixar transparecer em seus olhos o pouco apetite intelectual que via nas pessoas, mas sim, como qualquer ser humano, que gosta de ser convidada para festas. Afinal de contas, ela se divertia, de forma ímpar, mas se divertia. Ao mesmo tempo, as suas retinas congelavam algo centralizador nas relações humanas. Na verdade Lígia, tinha seus amigos, o seu ambiente intelectual e cultural, condizente com sua quarta dimensão. Mas se eles estavam nessa mesma dimensão, Lígia, porém, iria pular para a quinta dimensão. Sempre um passo, sempre um silêncio e um olhar a mais, nas externalidades e interioridades humanas.
A vida era dia após dia descortinada para ela como cortinas de um palco. Algumas cenas eram inéditas e outras ela já sabia todo o enredo, ator por ator social que transpassava a nível individual. Fugia dos debates ontológicos, não que não gostasse de filosofia, mas achava muito sério para ser debatido com qualquer um. As pessoas estavam mais interessadas em política, globalização, internet e comunicação do que com a própria filosofia. Insatisfeita do seu desejo de conhecimento se retirava mais cedo e ia beber com os bêbados mais vadios e vagabundos. Bebia muito! Como se diz por aí, tomava todas.
Uma pessoa independente. Não tinha horas de chegada nem horas de partida. Seu trabalho fazia com todo afinco possível. Afinal, gostava do que fazia e não tinha o porquê “transgredir” o próprio trabalho. Era fotógrafa de um grande jornal, tudo bem que suas fotografias não eram artísticas e sim continham cenas de total realismo, ao menos na lente do fotógrafo. Embora, Lígia achasse que a violência era parte da representação em um pedaço de jornal e que por trás disso existia toda a questão do exagero e medo humano. Sabia muito bem, como a imprensa conseguia afinar o medo para as mais tórridas correntes de sangue. A representação do outro sempre foi uma questão midíatica e não seria diferente com a violência, principalmente com a mais visível, a violência urbana. Lígia ia desde a periferia até as classes altas da sociedade (quando esses crimes formavam as grandes manchetes de jornais), contornava toda a cidade e sempre quando fazia esses caminhos mais diversos, lembrava sempre da música “Construção” e “Cotidiano”. Sua cabeça antes de fotografar algo “terrível” produzia as belas canções não só da MPB, Blues e Jazz, sem falar é claro, das músicas clássicas. Precisa disso! Precisa se preencher com algo bom e esse algo bom para ela nesse momento era a música e não a vulgarização da mesma.
Depois do trabalho, hora de beber e fumar e comer algo. Esse algo podia ser qualquer coisa, dizia que seu principal alimento era o conhecimento. Morava sozinha, num quarto de hotel, numa parte “boa” da cidade. Morava só. Gostava das pessoas por companhia, mas entre um Kant e um boteco cheio de más idéias, preferiria sem dúvida, ficar só com a “Crítica da Razão Pura”, quem sabe um dia entenderia. Fazia troça dela mesma, mas sabia muito bem que era verdade. Entender Kant era para poucos! E Lígia não era filósofa! Devia colocar-se no seu lugar, fotógrafa apenas isso. Mas pra ela, isso era pouco. Todas as ciências mexiam-lhe o cenho intelectual.
Aos domingos fugia da sua rotina. Não atendia telefones, celulares, não entrava na internet, não lia livros, não fotografava, não pulava para quarta ou quinta dimensão. Aos domingos iria visitar sua mãe. Todos os domingos a mesma “tarefa”. A mãe era o único resquício da infância que ainda tinha. Do pai pouco se lembra, a figura dele foi sumindo como os barquinhos que somem na linha do horizonte. O pai fugira de casa quando a menina tinha três anos, a mãe cuidou de Lígia como quem cuida de um bebê até na adolescência quando surgiram os primeiros sintomas da doença. A mãe de Lígia, tinha transtorno psicótico. Um dia quis por fogo na casa, outro dia quis por fogo na filha e outro dia quis por fogo no mundo. A menina não tinha condição de conviver mais com a mãe e foi retirada dessa com seus doze anos e a tia (a única tia) cuidou dessa adorável menina. Antes que cheguemos ao hospital psiquiátrico, antes que façamos essa viagem com Lígia, antes que conhecemos sua mãe, vamos conhecer primeiro sua amável tia. Natália amava sua sobrinha e tinha imensa comiseração por tudo àquilo que acontecia, até que pediu a guarda da jovem.
Natália era única irmã de Maria. Natália era solteira, trabalhava de emprega doméstica para a classe média e também como se costuma dizer, fazia outros bicos, tudo para garantir o “futuro” de Lígia. Na verdade a tia Natália viveu para a sobrinha. A “pobre” apaixonou-se por Pedro, um rapaz da vizinhança que trabalhava em uma oficina mecânica, esta paixão parecia terminar em matrimônio, até que Natália ficará grávida e ele a rejeitou e pediu o aborto. Todo o “amor” e paixão acabaram nesta palavra: aborto. Tia Natália não abortaria, do jeito que era amável e sensata, jamais faria isso. Lígia, nessa época já tinha seus dezessete anos! E tinha escolhido a fotografia como meio de vida. Lígia apoiou a tia em tudo em que lhe coube mais de nada vale o apoio quando vem a outra palavra: morte. Natália morrerá no parto e a criança também. Lígia amaldiçoou tudo que lhe coube, chegou até gritar com Deus, mas sabia que de nada valia. Tia Natália estava morta e seu amor por ela onde ficaria? Qual era o sentido da vida? Que sentido tinha tudo aquilo? Sim, porque nessas alturas além de perder a mãe aos doze anos de idade para um hospital psiquiátrico, perderá agora a tia, para algo mais ininteligível, a morte! Lígia amava aquela tia como amava uma mãe ausente. Decidiu então, esfolar os sentidos da razão e da emoção e seguir em frente, tudo estava passado no seu nome, mesmo pouco, era uma casa no seu nome e um carro popular. Pegou esse dinheiro. Mudou de bairro, começou a fazer fotografia e tinha lá seu ganha pão também com produções de trabalhos acadêmicos. Conseguiu se virar às duras penas.
Pra dizer que Lígia não é imune de sentimentos, até hoje, vai ao cemitério local, levar flores. Apenas flores e nada mais, senão flores. É como se as flores para a sua tia falassem mais do que se fosse para a sua mãe. Talvez os mortos mereçam ou entendam mais as rosas do que os vivos. Em cada pétala é como se estivesse uma lágrima rígida de Lígia. Nada de velas ou rezas. Apenas flores.
Mas como é domingo, é chegado o dia de sua visita no hospital psiquiátrico São Paulo. Lígia sente um amor latente pela mãe, o problema é demonstrá-lo. Não que a culpa seja sua. Mas sim, por parte de Maria que pouco entende de amor. Nem sabemos se ela sabe que aquela mulher (Lígia, já está com 32 anos) é sua filha. Maria passa o tempo falando sozinha! A sua “violência com os outros” foi domada com tantas drogas. Tem suas crises características de mania de perseguição, delírios, alucinação. Certa noite, terça-feira passada, acordou toda ala, pois jurava de pé de juntos que existiam em seu quarto, grandes cabeças de porcos grudadas na parede, existia um grande palhaço gritando o seu nome. O medo era reverenciado como sua própria essência. Era a espetacularização traumática do ser. Quando isso acontecia, Maria era imediatamente dopada. Voltava a si horas depois. Ela pairava entre a inquietude e a “normalidade”. As mãos de Maria sempre em movimento, sempre buscando alguma coisa no ar, alguma coisa etérea. Suas mãozinhas iam de encontro ao invisível, por mais que buscasse nunca encontrava esse pedaço de matéria.
Enquanto isso, Lígia está a caminho. Queria poder levar rosas, mas sabe que seria um gesto infantil, no lugar de rosas, melhor uma caixa de chocolates. Sim, faria isso. Passou no primeiro hipermercado que encontrara no caminho e comprou uma bela caixa de bombons. Queria poder escrever um bilhete – Mãe te amo! Mas seria ingênuo pensar dessa maneira. Maria como já foi dito não reconhecia nem ao menos a própria filha, o que dirá a palavra amor para ela? Que efeito teria esse gesto? Lígia sabe, nenhum. Enquanto pensava sobre tais questões, dois adolescentes encararam-na. Veio logo, a “raiva” de transparecer os sentimentos para os outros. O que afinal eles encararam? Sua dúvida? Sua dor? Sua essência? Seu temor? Contudo, Lígia, optou pelo obvio, não eles não teriam capacidade para tal percepção. Então, comprou logo a caixa de bombons colocou numa sacola comum do hipermercado e seguiu seu caminho. Ainda no trânsito surgia na sua mente os olhares dos adolescentes! Ela decidiu olhar pra si e ver quantas lacunas ainda não estavam preenchidas. Causa disso em boa parte devido à mãe ausente. Não sentiu pena. Nem dó. Nem compaixão. Na verdade, não sentiu nada, nem por ela e nem pela mãe. Naquele momento estava só. E não queria mais pensar ou desenvolver pensamentos que transpunham sua essência em algo doloroso. Queria chegar logo no hospital, visitar sua mãe, conversar com os médicos e voltar para a sua rotina. Nada muito além. Como já foi dito, nos dias de domingo, Ligia não ia para quarta ou quinta dimensão. Era um ser humano como outro qualquer, e no domingo apresentava o que mais detestava sua pequena e quase invisível fragilidade materna.
_ Chegou cedo hoje! Disse uma das enfermeiras.
_ Sim, o trânsito de domingo é sempre bom.
Sem maiores comentários interrogativos, Lígia entrou pela porta da frente do hospital psiquiátrico São Paulo. Passou por alguns corredores, dobrou à direita, depois à esquerda, seguiu mais uns cinqüenta metros e logo já se via o pátio. Muitas visitas hoje, foi o que reparou logo a primeira vista, sua mãe estava sentadinha num banco rústico, sempre apalpando o ar. O pátio era um lugar bonito. Parecido com um bosque. Muitas árvores, coqueiros, roseiras, uma trilha para quem quisesse fazer suas curtas caminhadas. Muitos postes com luzes, que melhorava muito o ambiente noturno do hospital. Lígia chegara de mansinho, querendo ainda brincar com a mãe, querendo assustar a mãe e depois se jogar no pescoço dela e dar aquele beijo perdido na infância. No momento em que ia, parou! Percebeu o erro que estava cometendo. Poderia assustar de verdade a mãe e essa poderia ter surtos. Melhor não arriscar. Então, seguiu sua marcha normal. Chegando perto disse:
_ Mãe. Sou eu Lígia. Sua filha. Trouxe bombons para a senhora. Bem docinhos e redondos; Lígia riu quando disse isso, queria fazer graça, mas de nada valeu.
Maria continuava com a sua mãozinha apalpando o ar e olhando quem sabe, o horizonte indefinido.
Porém, Lígia não se conteve, foi e deu um forte abraço na sua mãe. Ela tentou retribuir com alguma força nas mãos e depois cedeu ao nada. Lígia pegou sua mão e a beijou.
_ Mãe eu te amo! E deu um lindo e suave beijo nas suas faces.
Nesse dia, aconteceu algo extraordinário. Maria retribuiu o beijo e disse que estava melhor, disse que tinha porcos nas paredes dos quartos, disse que tinha um palhaço gritando o seu nome, disse dos remédios. Só que no mesmo instante, ouve aquela regressão, ouve os delírios, mas mesmo assim, manteve-se calma ao lado da filha. Uma cena e tanto! Lígia cantou uma canção para a sua mãe, enquanto ela delirava, enquanto alucinava, Lígia cantava:
Há Tempos
Parece cocaína mas é só tristeza, talvez tua cidade
Muitos temores nascem do cansaço e da solidão
E o descompasso e o desperdício herdeiros são
Agora da virtude que perdemos.
Há tempos tive um sonho
Não me lembro não me lembro
Tua tristeza é tão exata
E hoje em dia é tão bonito
Já estamos acustumados
A não termos mais nem isso.
Os sonhos vêm
E os sonhos vão
O resto é imperfeito.
Disseste que se tua voz tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira.
E há tempos nem os santos têm ao certo
A medida da maldade
Há tempos são os jovens que adoecem
Há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
E só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção.
Meu amor, disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem
E ela disse: - Lá em casa têm um poço mas a água é muito limpa.
Era como se as duas contemplassem o infinito. Cada qual da sua maneira. Lígia nunca entenderia Maria e Maria nunca entenderia Lígia.
Maria estava presa pra sempre naquele hospital e Lígia estava livre pra sempre. Ambas, porém, incompreendidas e vivas!
Huuum... Gostei!! Mto Bom!!!
ResponderExcluirContinue Déia, vc está no
caminho certo.
Beijão.
incrívelmente belo e delicado! gostei muito. as duas vivas e incompreendidas.... sem palavras, déia!
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