terça-feira, 13 de outubro de 2009

Ecce Homo

Sim, sei de onde venho!
Insatisfeito com a labareda
Ardo para me consumir.
Aquilo em que toco torna-se luz,
Carvão aquilo que abandono:
Sou certamente labareda.

Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência"

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

"É preciso estar sempre embriagado. Eis aí tudo: é a única questão. Para não sentirdes o horrível fardo do Tempo que rompe os vossos ombros e vos inclina para o chão, é preciso embriagar-vos sem trégua.

Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira. Mas embriagai-vos.
E se, alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre a grama verde de um precipício, na solidão morna do vosso quarto, vós acordardes, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que foge, a tudo que geme, a tudo que anda, a tudo que canta, a tudo que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, responder-vos-ão: 'É hora de embriagar-vos! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos: embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira'."

Charles Baudelaire


quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Fala do velho do restelo ao astronauta

Aqui, na Terra, a fome continua,

A miséria, o luto, e outra vez a fome.


Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
lhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.


( SARAMAGO; In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)


terça-feira, 6 de outubro de 2009

Todos os Escritos Possuem um Sentido

Não queremos ter vergonha de escrever e não sentimos a necessidade de falar para não dizer nada. De resto, ainda que o desejássemos, não o conseguiríamos: ninguém pode conseguir isso. Todos os escritos possuem um sentido, mesmo que esse sentido esteja muito afastado daquele que o autor tenha pensado dar-lhe. Para nós, com efeito, o escritor não é Vestal nem Ariel: está «metido no caso», faça o que fizer, marcado, comprometido, mesmo no seu mais profundo afastamento. Se, em certas épocas, utiliza a sua arte para forjar bugigangas de inanidade bem soante, até isso é significativo: é porque há uma crise das letras e, sem dúvida, da sociedade.




Jean-Paul Sartre, in 'Situações II'

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O tempo e o espírito

O tempo, embora faça desabrochar e definhar animais e plantas com assombrosa pontualidade, não tem sobre a alma do homem efeitos tão simples. A alma do homem, aliás, age de forma igualmente estranha sobre o corpo do tempo. Uma hora, alojada no bizarro elemento do espírito humano, pode valer cinquenta ou cem vezes mais que a sua duração medida pelo relógio; em contrapartida, uma hora pode ser fielmente representada no mostrador do espírito por um segundo.


Virginia Woolf

Os nossos eus

Esses eus de que somos feitos, sobrepostos como pratos empilhados nas mãos de um empregado de mesa, têm outros vínculos, outras simpatias, pequenas constituições e direitos próprios - chamem-lhes o que quiserem (e muitas destas coisas nem sequer têm nome) - de modo que um deles só comparece se chover, outro só numa sala de cortinados verdes, outro se Mrs. Jones não estiver presente, outro ainda se se lhe prometer um copo de vinho - e assim por diante; pois cada indivíduo poderá multiplicar, a partir da sua experiência pessoal, os diversos compromissos que os seus diversos eus estabelecerem consigo - e alguns são demasiado absurdos e ridículos para figurarem numa obra impressa.

Virginia Woolf, in "Orlando"

Predomínio do sentido interior

Era eu um poeta estimulado pela filosofia e não um filósofo com faculdades poéticas. Gostava de admirar a beleza das coisas, descobrir no imperceptível, através do diminuto, a alma poética do universo.

A poesia da terra nunca morre. Podemos dizer que as eras passadas foram mais poéticas, mas não podemos dizer (...)
A poesia encontra-se em todas as coisas - na terra e no mar, no lago e na margem do rio. Encontra-se também na cidade - não o neguemos - é evidente para mim, aqui, enquanto estou sentado, há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia no barulho dos carros nas ruas, em cada movimento diminuto, comum, ridículo, de um operário, que do outro lado da rua está pintando a tabuleta de um açougue.
Meu senso íntimo predomina de tal maneira sobre meus cinco sentidos que vejo coisas nesta vida - acredito-o - de modo diferente de outros homens. Há para mim - havia - um tesouro de significado numa coisa tão ridícula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato. Há para mim uma plenitude de sugestão espiritual em uma galinha com seus pintinhos, atravessando a rua, com ar pomposo. Há para mim um significado mais profundo do que as lágrimas humanas no aroma do sândalo, nas velhas latas num monturo, numa caixa de fósforos caída na sarjeta, em dois papéis sujos que, num dia de ventania, rolarão e se perseguirão rua abaixo. É que a poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus, a tomar plena consciência de sua queda, atônito diante das coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das coisas, e lutasse para recordar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não sob aquelas formas e aquelas condições, mas de nada mais se recordando.


Fernando Pessoa em "O Eu Profundo".
1910?


O diário de uma unha

O peso da verdade caiu como aço E como aço cortante e viril
Rogou para as lápides em memórias falsas
Para todos os tolos sua força podre e morta.

Quantos vômitos, quantas náuseas, quantos dentes?
Não existe mais cabelo!
Não existe mais corpo!
Não existe mais unhas!
Feliz pôr do sol comentado pela suave linguagem do poeta que se foi,
Foi a linguagem dos macacos ácidos...foi a linguagem do homo sapiens...

O conhecimento cá no peito, como força cravada
De tantas verdades perfeitas e ignóbeis.
Feliz foi e é o homem que se libertou e se liberta de tantas ditaduras impostas
Seja pra lá, se pra cá, Ocidente, Oriente, tanto faz.
O que importa é a felicidade livre!
Felicidade livre! Que sonho mais belo e doce! Utopia do meu coração!

Que seja utópico então, meu querido irmão!
Pense como Campanella, Tomas Morus, Platão!
Viva a Utopia! Senão, esqueça da escola e das ideias porque de nada valeram...
Viva a Cidade do Sol, do nosso lúcido Campanella!
Viva a Utopia, do nosso querido Morus!
Viva a República, do nosso amado Platão!
Viva a Utopia! Caro irmão!

“Macacos evoluídos” escutem a “minha reza”:
_ Escutem a procissão passar, seguem em marcha...antes que a vela derreta e o pecado acabe.
_Soldados em marcha seguem em frente têm crianças, mulheres, velhos, esperando vossas sentenças... Loucura liberta! Razão enclausurada!

O tempo está aqui, vagando dentro e fora de nós.
Passíveis, responsáveis, hipócritas, mentirosos, solidários, sonhadores, articuladores, verdadeiros?
Não! Definitivamente não!
Uma palavra vaga e pequena não caberia ao tempo nem aos contemporâneos, façanhas justiçáveis.
Quero ser utópica! Meu caro irmão!

Criar idéias! Pensamentos! Razões! Alternativas!
Sem razão de ser o que realmente deveria ser!
Pois a verdade está enterrada na alcova com o mais fino aço cortante.
E a unha está quebrada.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Isso é muita sabedoria

"Quando fazemos tudo para que nos amem e não conseguimos, resta-nos um último recurso: não fazer mais nada. Por isso, digo, quando não obtivermos o amor, o afeto ou a ternura que havíamos solicitado, melhor será desistirmos e procurar mais adiante os sentimentos que nos negaram. Não fazer esforços inúteis, pois o amor nasce, ou não, espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes, é inútil esforçar-se demais, nada se consegue;outras vezes, nada damos e o amor se rende aos nossos pés. Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido. Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer. Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho...o de mais nada fazer".


Clarice Lispector